segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Minhocas na cabeça


Ela não acreditava que estava prestes a vivenciar a mesma cena que assistiu repetidamente por anos antes de seus pais se separarem. Ela sentada de um lado da cama e ele, no outro lado, ambos de costas um para o outro. Pensou que poderia escapar de tudo isso.
— Precisamos conversar – ele disse
Pelo seu tom de voz ela sabia que não poderia ser coisa boa. “Precisamos conversar” vem sempre seguido de “Não dá mais”, “conheci outra pessoa”...
Lembrou de tudo que passaram juntos e de como não poderia esperar por esse momento, não agora, não hoje que finalmente descobrira que estava grávida.
Ela tinha certeza que estavam bem e nada havia acontecido recentemente que indicasse o contrário. Ainda ontem ele a olhou com tanto desejo e lhe disse que nunca esteve tão linda. Fizeram amor como havia tempo não faziam e ela teve certeza que nada poderia os separar. Tolice.
— Espera! – ela disse – antes de você dizer qualquer coisa, me deixa tomar um banho, assim conversamos com mais calma, ok?
— Tá,tudo bem.Vai lá.
No caminho para o banheiro, passou na cozinha e apanhou uma faca. Ela sabia que não tinha estrutura para reviver o pesadelo de brigas que vivera com seus pais, não com uma criança a caminho.
Enquanto enchia a banheira suas lágrimas caiam quase que com a mesma velocidade com que caia a água. Mil coisas passavam por sua cabeça:
— O corte é vertical ou horizontal? - pensou
Não chegou a considerar escrever uma carta de despedida. Para que? Depois que estivesse morta, não faria mesmo diferença.
Lembrou do dia que se conheceram e se deu conta que já havia 15 anos que estavam juntos. Sabe que se a deixasse, nunca seria tão feliz como foi enquanto esteve com ele. Nunca brigaram e até hoje ela tinha certeza que tamanho amor e harmonia poderiam durar para sempre. Imaginou como seria quando o bebê chegasse e percebeu que seu choro agora era convulsivo.
Recordou cada momento que tiveram juntos: o primeiro beijo no carro após o show de rock, a primeira vez que dormiram juntos quando os pais dele viajaram, o primeiro orgasmo, os planos para o futuro, os medos, as tantas alegrias... O que ele iria dizer aos familiares? Será que iria chorar muito? O que pensariam os amigos?
Entrou na banheira. A água morna e todo vapor que se formara no banheiro não conseguiam fazer com que relaxasse. Obviamente não era algo fácil de fazer.
Pensou em sua mãe que havia se mudado para outro estado e ficou ainda mais triste ao perceber que ela não veria o neto ou neta que tanto queria.
A lembrança da infância voltava. A mesma cena: os pais no quarto, de costas um para o outro após uma discussão violenta. Nunca entendeu porque nunca havia visto os pais se abraçarem, beijarem ou manifestarem qualquer forma de afeição um pelo outro. Questionava-se desde muito pequena se ela seria a culpada pelas constantes brigas dos pais.
E os carnavais?Adorava carnaval quando criança. Sua mãe ficava em tal estado de euforia que começava a confeccionar as fantasias com meses de antecedência. As suas e as da filha. O pai nunca participou de nenhum carnaval. Preferia ficar em casa. Nunca saia. Nunca viajava. Nunca nada.
Olhou para a faca mais uma vez e se perguntava se teria mesmo coragem e enquanto decidia continuou a lembrar de sua vida.
Pensava na avó e como quase ficou louca morando com ela durante seis meses... Já fazia tempo, há pelo menos 10 anos atrás. Ela tinha aquele relógio cuco insuportável que marcava cada hora com uma música mais irritante que a outra. Chegara a esconder o relógio algumas noites, mas a avó acordava cedo demais e reclamava da ausência do seu objeto tão estimado. Foi quando decidiu que era hora de morarem juntos:
— Não agüento mais morar com a minha avó. Vou procurar um apartamento para alugar.
— Agora não dá. Lembra que ainda estou pagando o carro?
— Não quero saber. Eu vou... Se vier comigo, melhor, se não, vou sozinha!
E assim se mudaram para o primeiro apartamento. Os primeiros móveis, o primeiro bichinho de estimação: uma gatinha encontrada no Jardim Botânico da cidade.
— Nossa!Essa gata está velha!- pensou.
Olhou a faca e então a porta se abriu. Ela soltou a faca na banheira antes que ele percebesse.
— O que foi? Estava chorando?
— Não é nada, acho que estou ficando gripada – disse tentando disfarçar as lágrimas — O que foi?
— Sua mãe ligou. Disse que recebeu sua mensagem no celular e me deu os parabéns, não entendi nada.
Naquela hora lembrou que havia enviado uma mensagem para o celular de sua mãe, anunciando a gravidez.
— Ah, ela deve estar louca. Você não conhece minha mãe?
E realmente não era algo difícil para ele conceber. Sua sogra era mesmo dada a certa confusão, mas isso não a tornava menos divertida. Sempre gostou muito dela.
— Hum... Tá. Olha, já que estamos conversando, eu precisava te falar.... Eu não estou muito bem e você deve ter percebido. Por isso disse que precisávamos conversar.
Ela então não conseguiu conter as lágrimas que insistiam em cair novamente.
— Não precisa chorar, amor. Não é nada muito sério.
Ele a havia chamado de “amor”. Não se chama uma mulher de amor quando se está prestes a dizer que não a quer mais. Ela estava ainda mais confusa.
— Olha, é que meu chefe está afastado e estamos envolvidos num projeto muito grande. Eu vou ter que ficar no lugar dele até ele voltar e nossa, já estou tão cansado, mas talvez isso signifique que eu tenha que ficar até mais tarde no escritório, por alguns meses. Eu sei que você fica p... da vida com isso, que acha que eles estão me explorando e tudo mais, mas veja pelo lado bom: eu vou receber as horas extras e quem sabe no final do ano a gente consiga fazer aquela viagem.
Ela então chorou com mais vontade, o que o deixou muito assustado. Ela se sentia estúpida de ter imaginado tanta besteira. Será que estava tão sensível por conta da gravidez?
— Amor, o que foi que eu fiz? Disse alguma coisa errada? São só alguns meses, eu prometo!
Ela então tirou a faca da banheira. Ainda chorava convulsivamente e tremia muito.
Quando viu a faca ele não entendeu nada e num impulso conseguiu tirar a faca da mão dela e a abraçou. Acabou caindo na banheira, de roupa tudo tentando entender o que estava acontecendo.
Ela então o olhou e disse:
— A faca eu tinha trazido para abrir uma embalagem de creme que não conseguia abrir... Não encontrei a tesoura e depois acabei esquecendo aqui.
— Mas porque está chorando desse jeito?Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu sim, você vai ser pai.
Nesse momento, ele a olhou com tamanho amor que ela nem lembrava quando fora a última vez que alguém a olhara desse jeito. Beijaram-se e ele disse:
— Hoje você está fazendo de mim o homem mais feliz do mundo. Eu te disse ontem o quanto você estava linda, está vendo só?É como se alguma coisa em você tivesse mudado. Agora você está mais linda ainda, mesmo com esses seus olhos inchados de tanto chorar.
Ela riu e o abraçou como se nada no mundo pudesse separá-los. Se amaram ali mesmo, na banheira, em meio à faca, às lágrimas e a promessa de que tudo se resolveria dali em diante.

Um comentário:

malu disse...

Que lindo! Lembra meu conto sobre a Ana, na minha concepção: como podemos sofrer por um medo que só existe dentro de nós, que parece real que só, mas não é.
bjs