terça-feira, 2 de outubro de 2012

Trauma


Hoje, lendo um conto de Edgar Allan Poe, me lembrei do quanto gosto disso, desse estilo, dessa coisa meio sombria e totalmente infanto-juvenil que não chega a assustar mais ninguém, aí lembrei deste conto que escrevi há uns 2 anos e nunca havia postado.

#######################################################################################


Débora ajeita o retrovisor para dar uma olhada em seu filho que não disse uma só palavra desde que deixaram a cidade. O menino de sete anos parecia comtemplar a paisagem, as árvores com suas folhas em vários tons de verde, marrom e laranja que voavam e batiam na janela do carro.
Sair de São Paulo para passar as férias de verão no interior fora a escolha de uma mãe preocupada com um menino que perdera o pai de forma tão trágica. Débora e Eduardo não estavam mais juntos, ainda assim, ela sentia muito a perda, principalmente por causa de Pedro que presenciara tudo: o pai fora assassinado durante um assalto à sua casa , enquanto jantavam. Pedro fora poupado, mas o trauma que o episódio lhe causaria, seria permanente.
Como era triste pensar que o primeiro enterro que Pedro tenha assistido fora o do próprio pai. A mãe estranhava a maneira como o filho estava lidando com a situação. Três meses haviam passado desde o ocorrido e o menino parecia bem, a não ser pelo fato de que se tornara muito calado.
— Tudo bem aí atrás?
— Ahan.
— Olha, estamos chegando! Está vendo as placas? Visconde de Mauá – 5 kilômetros.
Débora era artista plástica e passaria os próximos meses trabalhando em uma grande encomenda para uma loja de decorações. Havia escolhido o lugar por saber que era uma região de natureza exuberante, com rios e cachoeiras, lugar perfeito para que ela e Pedro pudessem se recuperar do pesadelo que os últimos meses haviam sido.
A casa que ficariam era alugada e estava localizada no alto de uma pequena colina, em meio a um lindo bosque. O vizinho mais próximo estava a uns 500 metros. Senhor Onofre morava no pé da colina e mantinha uma pequena mercearia que abastecia as redondezas.
Após se estabelecerem no pequeno chalé, Débora se pôs a trabalhar em suas esculturas no quintal, de modo que pudesse observar Pedro brincando entre as árvores. Era reconfortante assistir seu filho sorrir, como se o inferno que viveram há tão pouco tivesse ocorrido anos atrás.
Em uma tarde, enquanto trabalhava, Débora perdera Pedro de vista. Chamou seu nome algumas vezes sem obter resposta alguma. Seu coração gelou e ela correu em meio às árvores do bosque já com lágrimas nos olhos, como se soubesse que algo terrível tivesse acontecido. Em poucos minutos, ela chegava à mercearia de seu Onofre, ofegante e desesperada. O proprietário do estabelecimento segurava Pedro em seus braços e ao se aproximar, notou que o menino estava desacordado e com arranhões pelo corpo todo.
— Pedro! Pedro! – gritava a mãe ao abraçar a criança.
— Calma, senhora! Vai ficar tudo bem. Ele chegou aqui nesse estado, chorando muito e chamando pela mãe. Fique sossegada, que eu levo vocês ao posto médico e lá cuidarão bem dele.
Débora ajeitou seu filho no banco de trás, ainda desacordado e seguiu na frente, no banco de passageiro com seu Onofre. Nenhuma palavra fora proferia durante o trajeto e a sensação que se tinha é que o clima estava tão tenso que seria possível cortá-lo com uma faca.
Chegando ao posto de saúde, o menino fora levado às pressas para a sala de emergência e algum tempo depois, um médico viria acalmar a mãe, dizendo que seu filho estava se recuperando bem. No entanto, o tom das perguntas que o doutor direcionava a Debora, deixava claro que ele suspeitava que a mãe teria sido responsável pelos ferimentos no corpo da criança.
— Como assim? O senhor está insinuando que eu teria machucado meu próprio filho? Que absurdo é esse? Até porque, seria muita estupidez da minha parte arranhar o menino daquele jeito e trazê-lo ao pronto socorro, não acha?
Atraído pelos gritos da mãe, Pedro aparece no corredor, com um frasco de soro pendurado no braço e Débora pode notar com mais nitidez que o que fosse que tivesse atacado seu filho, parecia não ter deixado uma única parte do seu corpo ilesa. Os dois se abraçaram e choraram, mas Pedro nada respondia à sua mãe quando esta lhe perguntava o que havia acontecido. Débora achou melhor não pressionar o garoto, dados os últimos acontecimentos em sua vida.
Alguns dias se passaram e Débora tentou retomar seu trabalho, só que desta vez, sem tirar os olhos de Pedro, que a cada instante, parecia se distanciar mais e mais em um mundo que ela não conseguia entrar. O menino voltou a urinar na cama, coisa que ela também sabia que poderia acontecer devido ao trauma que o menino havia sido submetido. Ela acreditava que um animal teria atacado seu filho na floresta, mas por via das dúvidas, pediu que o chaveiro trocasse as fechaduras da casa.
Pedro, por sua vez, também começou a falar sozinho e quando questionado sobre com quem estaria conversando, ele dizia que se tratava de um novo amigo, Nilo.
Débora tentava se convencer de que a invenção de Nilo também era uma forma de seu filho lidar com os problemas, mas as coisas começaram a fugir do controle quando algumas de suas esculturas começaram a desaparecer e a gota d´água foi quando várias de suas pinturas haviam amanhecido pixadas, rasgadas, destruidas.
— Pedro, eu sei que você está passando por um momento muito difícil, mas destruir as coisas da mamãe não está certo.
— Não fui eu, mãe. Foi o Nilo.
— Pedro, olha, tudo bem você ter um amigo imaginário, mas isto está indo longe demais! Vamos parar com esta besteira, ok?
— Porque você não acredita em mim? Foi ele, eu juro.
Débora, vendo que não conseguiria convencer seu filho a confessar, resolveu deixar o assunto de lado por um tempo e o convidou para ir até a feirinha de artesanato da vila.
Já na vila, Pedro se enturmou com algumas crianças e Débora sentou em um dos bancos da praça com outras mães para observar seu filho. Uma das mulheres não demorou a puxar assunto:
— Olá, vocês não são daqui, né?
— Não. Estamos de férias na casa da colina.
— Ah, a casa da colina.
E tão logo a mulher terminou a frase, uma outra que também estava sentada completou:
— Puxa vida, já fazia tempo que ninguém ficava lá.
— É mesmo? E por que? – Perguntou Débora em um tom quase desinteressado para que as outras duas não percebessem que ela tentava manter segredo sobre o que estava passando com seu filho.
— Ah, você sabe, boatos.
— Cala a boca, Edna. Não vá você querer espantar os turistas!
— Não, por favor, eu quero saber.
Então Edna contou o que toda a vila sabia, diante do olhar de reprovação da colega:
— Então, essa região é cheia de hippies, né? Sabe como esse povo é! Inventam histórias para impedir o progresso. Diziam que quando o asfalto chegou, uma série de duendes ficou sem casa porque muitas árvores foram derrubadas e uma das árvores mais antigas, ficava no terreno onde foi construída a casa da colina. Por isso, que os duendes infernizam a vida de quem fica na casa. Mas isso é só uma lenda.
— Claro, imagine! Duendes... Bom, obrigada pela conversa, mas tenho que ir.
Débora puxou Pedro pelo braço e seguiu para casa certa de que o menino ouvira essa história em uma de suas visitas à vila e que inventara todas as mentiras para chamar sua atenção. Estava aliviada de pensar que encontrara a resposta, mas ficou ainda mais preocupada de imaginar que o garoto fosse capaz de se machucar apenas para aparecer.
Assim que chegaram em casa, Débora colocou Pedro para dormir em sua cama e ligou para a psicóloga que acompanhava o menino após a morte do pai. Ela explicou que todos os últimos eventos ocorridos não passavam de sinais claros de que Pedro estava querendo chamar atenção e que esse era o modo que tinha de lidar com a morte do pai. A psicóloga acalmou a mãe, dizendo que crianças chegam a se ferir gravemente e culpar amigos imaginários, tal qual vinha fazendo Pedro. Ambas chegaram à conclusão, de que mãe e filho deveriam retornar à São Paulo e dar continuidade ao tratamento da criança. Débora desligou o telefone um pouco mais aliviada e foi dormir.
Conforme se aproximava do quarto, pôde ouvir a voz de Pedro que parecia discutir com alguém, mas para sua surpresa, desta vez ouviu uma segunda voz, esganiçada e trêmula respondendo ao seu filho:
— Eu juro, juro, não falo mais nada. – choramingava o menino.
— Não adianta! Agora ela vai querer ir embora por sua culpa. Você falou demais! Eu já te aviso, que você pode até fugir, mas não vai conseguir se esconder! – Ameaçava a outra voz.
Débora correu em direção à porta, que se fechou com uma rajada de vento que soprara na casa e em seguida, só pode ouvir os gritos aflitos de Pedro. Ela forçava a porta sem sucesso enquanto o menino berrava desesperadamente e quando finalmente conseguiu entrar no quarto, se deparou com seu filho sozinho, chorando assustado e com o corpo coberto por hematomas. O menino estava em choque. Ela não teve dúvidas: agarrou tudo que pode no caminho do carro e deixou a casa, no meio da noite, em meio a uma penumbra sem fim. Ela não acreditava em duendes até então, mas se eles existiam, que ficassem com a casa, porque para lá ela não voltaria mais.

*****************

Algumas semanas se passaram desde que mãe e filho voltaram à São Paulo. Pedro voltou a se consultar com a psicóloga e já estava com uma aparência melhor, sem arranhões, hematomas ou amigos imaginários.
Débora tentava não pensar na casa da colina e quase conseguiu esquecer o lugar até uma manhã dessas, quando ao acordar, deu de cara com Pedro ao lado de sua cama. Ele parecia que a observava há algum tempo. Tinha os olhos vidrados e ao abrir a boca, pronunciou um som esganiçado e trêmulo dizendo:
— Você pode até fugir, mas não vai conseguir se esconder.




quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Literatura Juvenil contemporânea: Contos de Fadas ou ou apenas um sinal de rebeldia diante das Instituições?

Exercício proposto no Curso de Letras da Unimes - Análise de Harry Potter, Desventuras em série e Artemis Fowl;



Ao julgarmos determinada obra superficialmente, corremos o risco de fazer uma avaliação precária e completamente errônea do que ela realmente significa.
Afirmar que Harry Potter ou qualquer outro conto de fadas aborda temas como ocultismo, bruxaria, magia negra é o mínimo óbvio. Abordar e apresentar não são sinônimos de pregar, obrigar ou manipular.

Bom, como leitora e admiradora de contos de fadas, só posso dizer que os benefícios que estas histórias trouxeram à minha formação são inestimáveis. Desde a minha criatividade aguçada à capacidade de resolver conflitos, tudo graças à minha imaginação que foi sempre instigada à medida que lia mais e mais.

Na edição de 13 novembro de 2010 da Revista Época, vários jovens leitores de Harry Potter deram depoimentos à respeito dos valores adquiridos com a leitura da saga do bruxinho mais famoso do mundo ( leigos se referem à qualquer tipo de magia como magia negra, mas o tipo de magia praticada por Harry Potter só podia ser praticada graças à pureza de seu coração, afinal, em contos de fadas, a Magia é uma força que pode ser usada para o bem e para o mal, como uma SIMBOLOGIA para os antagonismos encontrados na VIDA REAL!).

O valor da verdadeira amizade, perseverança, confiar em si mesmo, a força do verdadeiro amor são alguns dos valores que estes jovens dizem ter adquirido com a leitura da série. Sou suspeita para afirmar qualquer coisa, uma vez que possuo todos os livros em Português e em Inglês tendo lido todos nas duas línguas, mas se alguém duvida da força dessas histórias, há de concordar que no mínimo é uma excelente fonte de vocabulário e entretenimento, o que me faz crer que é muito mais útil e acessível à um adolescente que um dos vários livros de leitura obrigatória do currículo escolar, cujo vocabulário e complexidade estão bem aquém da maturidade de nossos jovens.

É sabido que ao longo dos séculos as histórias infantis sempre tiveram a intenção de transmitir valores de cada época e com o passar dos anos, é natural que as histórias se adaptem, no entanto, os valores estão lá. Quem acredita que as histórias de hoje deturpam os bons e tradicionais valores morais, ficaria chocado ao saber que as versões mais antigas das histórias que conhecemos eram na verdade, muito mais sombrias e serviam de pano de fundo para encobrir temas tabus, como estupro, incesto, assassinatos e traziam normas de condutas para que problemas como os citados fossem evitados.

Na versão de Perrault do conto da Chapeuzinho Vermelho, o lobo mau engole a vovó e em seguida o conto é encerrado com o lobo devorando a Chapeuzinho, sem caçador, sem final feliz e com uma rima de moral onde fica implícito que o lobo da história é uma metáfora para qualquer jovem sedutor que se encontra à espreita , à espera de moças ingênuas que se arriscam sozinhas pelas ruas(1).

Se em Harry Potter, valores como amizade e amor são facilmente encontrados, em Desventuras em Série os irmãos Baudelaire demonstram como a união da família os ajuda a enfrentar todos os tipos de conflitos, por mais absurdos que possam parecer. No entanto, é possível encontrar em ambas as obras, críticas às instituições e à sociedade de uma forma geral, o que não anula seu valor na formação da personalidade de crianças e jovens.

“É comum que os livros escritos com o intuito de serem comprados para crianças estejam repleto de “morais”, como se a função da literatura fosse essencialmente pedagógica. O fato é que necessariamente não é a 'moral da história' o aspecto do texto que irá chamar a atenção do jovem leitor, já que outros aspectos (algo divertido ou assustador, por exemplo) da narrativa poderão se sobrepor a esse." (Reflexões sobre Literatura e infância em Desventuras em Série – Leonardo Silva)

Quanto a Artemis Fowl, seria frívolo de minha parte afirmar que um personagem cuja maior qualidade seja ser um grande criminoso tem com única função se rebelar contra as instituições. Segundo resenhas de especialistas, trata-se de uma excelente narrativa com divertidas situações inusitadas, capaz de prender o jovem leitor do início ao fim.

Artemis Fowl não é o primeiro anti-herói e nem será o último, mas afirmar que em função disso, sua história não seria capaz de acrescentar algo de positivo à formação da personalidade de adolescentes, seria o mesmo que dizer que toda uma nação irá se prostituir, roubar, matar por influência das músicas que ouve.
Valores morais podem ser apresentados em contos de fadas e estes podem ter como propósito a boa formação de nossos jovens, só que uma personalidade depende de muitos outros fatores para se formar.

Contos de fadas também podem servir de críticas às instituições e à sociedade, mesmo assim, uma rebelião é formada por muitos outros componentes além de palavras em um livro, ou seja, se os livros citados são realmente contos de fadas ou simples artifícios de rebelião contra às instituições, o fato é que sua contribuição para a formação da personalidade de jovens é indiscutível, ainda mais se considerarmos um país como o Brasil, onde a maior formadora de opinião ainda é a novela.

Em tempo: Robin Hood era um ladrão e nem por isso sua história deixa de ser um conto de fadas que transmite valores morais como amizade e justiça e ao mesmo tempo, faz uma crítica ao sistema de cobrança de impostos e à sociedade da época.


(1)Moral de Perault em Chapeuzinho Vermelho:
Little girls, this seems to say,
Never stop upon your way.
Never trust a stranger-friend;
No one knows how it will end.
As you’re pretty, so be wise;
Wolves may lurk in every guise.
Handsome they may be, and kind,
Gay, or charming never mind!
Now, as then, ‘tis simple truth—
Sweetest tongue has sharpest tooth!


On voit ici que de jeunes enfants,
Surtout de jeunes filles,
Belles, bien faites et gentilles
Font très mal d'écouter toutes sortes de gens,
Et que ce n'est pas chose étrange,
S'il en est tant que le loup mange.
Je dis le loup, car tous les loups
Ne sont pas de la même sorte :
Il en est d'une humeur accorte,
Sans bruit, sans fiel et sans courroux,
Qui, privés, complaisants et doux,
Suivent les jeunes demoiselles
Jusque dans les maisons, jusque dans les ruelles.
Mais, hélas ! qui ne sait que ces loups doucereux,
De tous les loups sont les plus dangereux !

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Liberdade

Somos realmente livres? Acredito que o senso comum quando se fala em liberdade é que só é livre quem faz o que quer, no entanto, se fizéssemos apenas o que queremos o que teríamos seria uma anarquia mais ou menos regida pela lei de Talião (Olho por olho...). Em um mundo onde as pessoas fazem o que querem, não existiria lei que garantisse que cada um usufruísse da sua liberdade como bem entendesse, ou seja, regras existem para que nossa liberdade seja garantida. Particularmente, tenho sérias dificuldades com as palavras, regras, leis, obrigações, rotinas... E obviamente, acreditava que me comprometer com o que quer que fosse, era uma forma de talhar minha tão sonhada liberdade. Liberdade nada tem a ver com poder fazer o que quiser, sem dar satisfações ou se preocupar com as conseqüências, é justamente o oposto: Liberdade tem a ver com escolhas, e claro, com renúncias. Só é livre quem consegue fazer suas escolhas de forma consciente e ser responsável pelas conseqüências que estas irão gerar. Agir de forma inconseqüente, sem se preocupar com possíveis danos no caminho não é ser livre, é ser infantil e até onde sei, crianças podem ser puras, mas não são livres. Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. Estou pensando nisso depois de ouvir uma amiga citando Dalai Lama: “esta ação irá lhe proporcionar felicidade ou prazer?” Para mim as duas coisas estavam intrinsecamente ligadas, pois sempre acreditei que fazendo o que me desse prazer eu seria extremamente feliz e talvez, a verdade não esteja tão longe disso, mas a questão é um pouco mais complexa se considerarmos o prazer como algo momentâneo, efêmero e felicidade como um sentimento mais profundo e duradouro. O óbvio seria: sou feliz em sentir prazer e quem não concordaria? Mas novamente, fazendo apenas o que nos apetece, certamente estaríamos ferindo a liberdade de terceiros, não é mesmo? Sei que é cômodo para muitos acreditarem que não são livres, mas a verdade é que ter que lidar com as conseqüências de nossas escolhas não é algo fácil e nem sempre agradável. É mais fácil não tomarmos decisão alguma sob pena de ter que lidar com um furacão de sensações desagradáveis lá na frente, mas em não tomar decisão alguma, você já fez uma escolha, então pode considerar-se livre. Se não sente assim, mais uma vez, de alguma forma suas escolhas o levaram onde está hoje, ou seja, escolheu, renunciou, ninguém o obrigou? Mesmo acreditando nos valores sob os quais foi educado, ainda assim escolheu fazer algo que vão contra os seus princípios? Conhecia as conseqüências e sabe lidar com elas, parabéns, você é realmente livre!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

"Ela se acha" : Apatia, arrogância e bipolaridade.

Para quem não sabe muito sobre bipolaridade, uma das maiores dúvidas de quem é bipolar é saber se certas características são naturais de sua personalidade ou se são reflexo da doença. Todas as vezes que iniciava algum tratamento com novo medicamento as mesmas dúvidas surgiam: o que sinto é meu, é reflexo da medicação ou faz parte dos sintomas da minha bipolaridade. Muitos anos convivendo com essas dúvidas, tomando remédios, freqüentando sessões de terapia e ainda não sei dizer ao certo o que é de quem, mas talvez tenha aprendido a identificar algumas dessas características. Não tomo remédios há vários anos, mas quem convive comigo há muito tempo sente que estou muito melhor hoje do que quando fazia tratamento, no entanto, a bipolaridade continua aqui, não tem cura e tenho que lidar com ela todos os dias. Alguns dias são piores que outros, mas no geral, diria que na maior parte do tempo, eu nem me lembro dela. Tudo isso para chegar a duas características minhas que infelizmente são muito marcantes e sendo elas extremamente negativas, a dúvida é como conseguir que não prejudiquem meus relacionamentos a ponto de pessoas quererem se afastar de mim. Pedir desculpas aos amigos pelas minhas atitudes grosseiras não sei se é o suficiente, de qualquer forma, peço desculpas à pessoas queridas que freqüentemente levam patadas sem merecerem e espero de coração que tenham um pouco de paciência e não se afastem, pois como já mencionei algumas vezes, amo todos vocês. Bom, tenho sido muito apática em relação a quase tudo. Apatia é a total falta de habilidade de demonstrar interesse, alegria ou entusiasmo pelo que quer que seja. Se alguém me contar que ganhou na loteria vai observar em mim a mesma reação que eu teria se a mesma pessoa contasse que o dia será chuvoso.... Branco total na expressão. O pior é que além da falta de interesse eu não tenho vontade nem de me esforçar para esboçar algum tipo de reação, me dá muita preguiça. Minha apatia é passageira, embora não saiba dizer por quanto tempo ela irá ficar, mas quem me conhece muito bem, sabe que minhas reações normais tendem a ser mais efusivas, do tipo boba alegre mesmo... Não sei o que é pior! RS Quanto a arrogância, ah...essa é minha mesmo. Às vezes ela fica lá na dela, mas tenho me sentido mais arrogante que o normal, o que pode ser reflexo de alguma outra característica da bipolaridade, mas ela é minha e eu acho horrível. Por essa qualidade eu realmente devo muitas desculpas à todo mundo, porque conviver com alguém que se acha melhor que os outros, deve ser um porre. Meus amigos e familiares são mesmo heróis. Não me acho melhor que ninguém, mas talvez tenha que voltar a fazer terapia para conseguir expressar melhor o que sinto, pois sei que pareço extremamente arrogante na maior parte do tempo. Eu sou, sei disso e estou tentando me controlar, pois não há nada na minha personalidade ou na minha vida que justifique acreditar que o que eu faço ou tenho seja melhor do que o que você faz ou tem. Sorry for that! Aceito sugestões quanto a lidar com isso e evitar que esta característica me afaste das pessoas que amo. Por agora, acho que o melhor conselho seria fechar a boca. Ouvir mais e falar menos, falar quase nada e quando o fizer, tentar se mais simpática. Estou me esforçando, acreditem. Se eu vou conseguir, aí já é outra história, para um próximo post. Wish me luck! ;)

quinta-feira, 26 de abril de 2012

FOREVER YOUNG

“Não Dani, você não pode ficar lendo esses blogs porque eles fazem você acreditar que precisa de tudo aquilo. Eles incentivam um consumismo desenfreado” “Ah, fala sério! Você gosta dessa música? É de uma boy band! Isso é tão adolescente” Estas são frases que ouvi recentemente e para variar, me fizeram pensar sobre algo que já venho refletindo desde a Palestra da Márcia Tiburi – “Rock and Roll – A invenção da adolescência entre a indústria e a angústia cultural”. À primeira vista, pode até parecer que as frases não tenham a ver com a palestra em si, mas a verdade é que tem tudo a ver. Estou com 35 anos e freqüentemente o assunto da idade vem a tona, como se passar dos 20 fosse uma vergonha total, diagnóstico de doença terminal ou coisa parecida e de certa forma, é quase isso. Sei disso porque mesmo sendo capaz de refletir sobre o assunto e saber que no fundo toda a indústria cultural gira em torno da venda de conceitos e produtos que nos façam acreditar que somos jovens para sempre,eu me vejo fazendo parte do jogo. Forever Young, é o sonho da maioria das pessoas, ou pelo menos, da maioria das mulheres que conheço. Seria redundante dizer que sofro de uma síndrome de Peter Pan gravíssima, mesmo assim, é muito difícil escapar de tudo isso. Entre minhas resoluções de ano novo, a mais importante era a de me tornar uma pessoa mais vaidosa, me cuidar mais, aprender a me vestir melhor e no fundo tudo não passa obviamente de uma tentativa de voltar no tempo ou enganá-lo de alguma forma. Errado? Fútil? Acho que não, porque é incrível o que estar de bem com sua aparência faz por sua auto-estima e como alguém pode se sentir mais confiante por estar com a auto-estima no lugar. No entanto, a questão é justamente que, para nos sentirmos bem conosco, nós estabelecemos parâmetros que estão ao nosso alcance, ou seja: celebridades que vemos todos os dias na TV, modelos de revista e por ai vai... Só que estas pessoas não são reais e acabamos caindo na armadilha de acreditar que só seremos admiradas se nos parecermos um pouco com o que é nos vendido como belo pela mídia. Tudo muito óbvio e mesmo assim, muito difícil de escapar. Por que me preocupo? Porque com 35 anos e mãe, sinto que certas atitudes são esperadas pelos outros no que diz respeito ao meu comportamento, jeito de vestir e não sei se algum dia vou me “encaixar” no perfil , simplesmente porque não me vejo como uma mãe de 35 anos. A maior parte das minhas amigas são mais jovens e eu continuo gostando de sair com elas, dançar, me divertir e principalmente, no que diz respeito à moda, a moda é feita para adolescentes, não para mães! Tá, eu não ligo tanto para moda, mas o fato é que todas as roupas que gosto de vestir, tudo que gosto de usar tem um perfil adolescente. Big deal? Sim! Você ainda não percebeu que não se trata de moda e sim do fato de realmente acreditarmos que não existe nada mais belo, nada mais sexy, nada mais apropriado do que ser JOVEM, mais precisamente, adolescente. A constante busca pela fonte da juventude vai acabar conosco. Não sei se alguém consegue lidar com isso de uma forma positiva. Eu definitivamente não consigo. Quero parar o tempo. Começa com uma música que é seguida de uma atitude, que gera um estilo que é sempre, sempre adolescente. Procuro estilos para me vestir mais adequadamente e tudo que eu gosto é usado por meninas muito mais novas do que eu e eu realmente acredito que suas roupas vão ficar ótimas em mim. Talvez eu esteja sendo ridícula. A Márcia Tiburi explica na palestra que a adolescência foi inventada no período pós guerra, quando os jovens passaram a ficar mais tempo na casa dos pais. Até então, a criança saia da infância, casava e era adulto. Hoje em dia, a adolescência tem durado cada vez mais. Para os gregos, um homem só era considerado adulto após os 30 anos. Números à parte, gosto dos elogios que recebo quando uso determinada roupa. É bom demais, mesmo sabendo que no fundo , eu esteja agindo exatamente como a tal da indústria cultural espera que eu aja. Um saco, porque mesmo me sentindo um pouco fantoche, é inegável que queremos nos sentir admirados e infelizmente, elogios não virão se eu jogar tudo para o alto e resolver virar punk, amaldiçoar o sistema. Eu estou no sistema, caramba! É , assim como a maioria das mulheres, preciso de aprovação! Não basta olhar no espelho e gostar do que vê, é preciso que todo mundo reafirme sua escolha. Go figure! Sei disso, me preocupo com o rumo das coisas e mesmo assim , não pretendo mudar. Saco! Não seria bem mais fácil simplesmente ser ignorante e aceitar tudo sem questionar? Pelo menos não estaria neste conflito estúpido. Bom, esta é a palestra: http://www.cpflcultura.com.br/2010/10/14/rock-and-roll-%E2%80%93-a-invencao-da-adolescencia-entre-a-industria-e-a-angustia-cultural-chuck-berry-e-elvis-presley-%E2%80%93-marcia-tiburi-e-fernando-chui-2/comment-page-1/#comment-6102

quarta-feira, 11 de abril de 2012

INSTINTO PRIMITIVO


“Vivemos num mundo doente”, cantou Renato Russo. Ele sabia das coisas. A cada dia eu me vejo cercada por mais pessoas queridas que estão deprimidas e eu espero de coração que este depoimento possa fazer alguma diferença em suas vidas, pois eu sei por experiência do que estou falando.
Bom, uma das coisas que mudou minha relação com a minha doença foi uma frase que uma amiga me disse, sem maiores pretensões e talvez se deva a ela o fato de eu estar viva: “Nosso instinto mais primitivo é o de sobrevivência”. Tá, e daí? Daí que o soldado lá no front de guerra e a mulher que não tem como alimentar seus filhos continuam lutando por suas vidas mesmo que aparentemente não valha a pena. O suicida que sobrevive a uma tentativa sabe bem o que é se arrepender e tentar voltar atrás no último segundo, porque nossos corpos foram “programados” para sobreviver. Ah, mas ninguém quer sobreviver apenas. De fato, mas se você entender que seu instinto mais primitivo é o de sobrevivência, irá perceber então que querer morrer vai totalmente contra as leis da natureza, ou seja, se você estiver convencido de que a morte é a sua melhor opção, pense novamente: VOCÊ ESTÁ DOENTE! Se o seu cérebro tem a certeza de que nada mais vale a pena, ele está dizendo que precisa de ajuda.
Depressão é uma doença que talvez não tenha cura, mas tem tratamento. Como toda doença, talvez você opte por soluções mais comuns como ir ao psiquiatra, tomar remédios e quando estiver melhor, esperar que a depressão volte e tudo recomece. Sim, ela pode voltar e sim, você pode acabar acreditando que não foi mesmo destinado a comer uma fatia daquele bolo que as pessoas chamam de felicidade. E aÍ? Voltamos ao fundo do poço, aquele lugar onde não existem perspectivas e onde a morte é tão sedutora que flertar com ela pareça até divertido. Já passei por isso e continuo passando!
E o que eu quero dizer? “Poxa, não vou ser feliz nunca e vou ter que conviver com isso?” Sim e não. Primeiro, a felicidade é relativa e pode depender muito de como você percebe a sua vida: moro em uma cidade com praia, adoro o mar, mas raramente vou à praia contemplá-lo, porque ele está sempre ali, disponível. Para algumas pessoas, ver o mar é um sonho e quem consegue realizá-lo não poderia experimentar felicidade maior. Sei que quando estamos lá no fundo pouco nos importamos como quantas crianças irão morrer de fome hoje na África, quantas pessoas estão morrendo de câncer, quantas mães perdem seus filhos em acidentes... Você quer mais é que o mundo exploda e de preferência, você com ele.
Se você puder tentar algumas coisas que funcionaram comigo, pode ser que sua situação não melhore em nada, mas eu garanto que não vai ficar pior! Você está no fundo do poço, lembra? O único caminho agora é para cima. Vamos às atitudes que me ajudam a sair da cama de manhã, mesmo que eu esteja com aquela sensação de nunca conseguirei ser feliz novamente ( lembrem-se que sou bipolar, por isso minha referência de felicidade é o pico de euforia que por prudência, seria melhor não voltar a ter):
• A primeira coisa que mudou foi realmente entender que querer morrer não é o desejo real de uma pessoa sã, ou seja, aceitar que estou doente;
• Lembrar de todas as mazelas do mundo e perceber que estou longe delas. Pensar nas tragédias do mundo de forma que até minha depressão fique com vergonha ( mas não pense muito , do contrário ficará ainda mais deprimido!);
• Entender que existem pessoas que me amam realmente e isso se deve a alguma coisa. Mesmo que eu não saiba exatamente o que, sei que sou importante para alguém ou que toquei alguém de alguma forma, por isso, minha vida também é importante para esta pessoa ( você com certeza é muito importante para mim!);
• Manter a cabeça ocupada com coisas úteis, produtivas, positivas! CORPO SÃO, MENTE SÃ! CABEÇA VAZIA, OFICINA DO DIABO! Fato! Fazer exercícios físicos é extremamente importante por conta das endorfinas e tal, mas sem ocupar a cabeça, sua mente vai estar sempre disponível para ser ocupada com pensamentos depressivos, obsessivos, compulsivos e por aí vai! Estude, leia bons livros, assista filmes, reflita sobre eles! Manter a mente ocupada ajuda muito a tirar o foco de tudo aquilo que você não tem e gostaria de ter;
• Tem uma religião? Ótimo! Eu não tenho, mas muitas das coisas que o budismo prega fazem muito sentido. “Toda dor vem do desejo de não sentirmos dor” – Renato Russo mais uma vez – Essa história de estarmos sempre querendo algo é uma das maiores fontes de angústia que existe. Você só quer algo porque sabe que outra pessoa tem e lhe parece feliz assim. Se tivesse crescido em um mundo onde a sua vida fosse o padrão, não teria tanta certeza de que a grama do vizinho é tão mais verde. Estamos sempre querendo outra vida, outra opção e talvez não exista outra opção a não ser o que temos para o momento e com certeza você TEM muitas coisas que outras pessoas também dariam tudo para ter, mas como está aí, ao alcance das mãos, você não percebe o quanto são importantes. O budismo fala muito à respeito de lidar com o “querer”. Ainda não aprendi, mas espero chegar lá.
• Chegou à conclusão de que não vai mesmo ser feliz, de jeito nenhum? Acontece e pode ser que nunca vá se sentir feliz da forma como imagina, mas já que está aqui mesmo, que tal então tirar o foco de você (já que por enquanto a sua vida não tem jeito mesmo) e pensar que existem outras pessoas no mundo que ficariam muito felizes com um pouco da sua atenção, do seu tempo, do seu amor? Conhece alguma criança? Idoso? Tem filhos? Sobrinhos? Estas pessoas também não pediram para vir ao mundo, mas se você se dedicar a fazer alguém feliz, pode ser que no caminho você consiga ficar feliz também e se não conseguir, ao menos você ajudou o mundo a ser um lugar mais feliz, menos doente. Por que não? Se não fizer bem, mal não vai fazer.
• Tenha um projeto (Tem me ajudado muito). Se envolver com algo que lá no fundo você lembra que achava interessante, mesmo que agora você não tenha interesse por nada, vai ajudar a tirar o foco dos problemas e direcionar o pouco da energia que sobra para produzir ou alcançar alguma coisa.
• Não deixe de manter contato com os amigos, mesmo sem a menor vontade de socializar. Eu me obrigo a fazer coisas divertidas mesmo quando não vejo a menor graça em nada, simplesmente porque assim eu consigo enganar um pouco o meu cérebro.É um jeito de dizer: “Hei, depressão, sei que você está aí e eu não dou nem tchuns pra você!”
• PARE DE BUSCAR A FELICIDADE COMO SE ELA ESTIVESSE ESCONDIDA EM ALGUÉM OU ALGUM EVENTO! Felicidade é um sentimento tão relativo e subjetivo que muitas vezes as pessoas conseguem o que queriam e não ficam felizes por isso, simplesmente porque nem sabem qual é a cara que a felicidade tem ou o gosto. O que temos é agora, então se você não consegue sorrir agora, ao menos lembre-se que você É o motivo do sorriso de alguém que esta pessoa precisa de você e gostaria muito de te ajudar a ser feliz ( eu estou entre elas). Use a neurolinguistica ( que eu chamo de auto-convencimento): nós somos capazes de convencer nossos cérebros de qualquer coisa. Conseguimos nos convencer de que somos uma merda, não servimos para nada, somos horríveis e também somos capazes de nos convencermos do contrário. Mais uma vez, se você não consegue, ao menos tente, diga para você mesmo o quanto as coisas estúpidas da vida são o máximo. Fale para você mesmo o quanto o sorriso de uma criança não tem preço, repita várias vezes, porque mesmo que seja uma mentira, lembre-se que uma mentira contada 1.000 vezes passa a ser verdade. Talvez tudo isso seja auto-ilusão, mas seu cérebro não precisa saber e você pode acabar se convencendo de que a vida realmente vale a pena e de no fundo, lá no fundo você é feliz.
Se nada disso ajudar, sei que não vai piorar. Caso ajude, passe a mensagem adiante, Quem sabe não caminhamos juntos para um mundo menos cinza, não é mesmo?

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O suéter vermelho


“Você é luz. É raio estrela e luar. Manhã de sol, Meu iaiá, meu ioiô” - Assim mais um dia começava para Luzinete, que embalada por sua música favorita se deu conta que estava atrasada para o trabalho.
Atualmente trabalha como balconista em uma loja de roupas masculinas de grife, mas não foi sempre assim.
Luzinete saiu de Santo Antônio do Pinhal com 13 anos para trabalhar como babá em uma casa de família em São Paulo e quando as crianças ficaram maiores, seu patrão lhe ofereceu um emprego em sua loja num bairro nobre da cidade.
O lugar era muito bem freqüentado por empresários, modelos e até artistas de TV, o que fazia com que Luzinete vivesse fantasiando com o dia que um desses distintos homens a chamaria para sair.
Naquele dia tomou o ônibus como de costume e a caminho do trabalho, se lembrou do estranho sonho que teve: um homem sem rosto vestido num suéter vermelho vinha a seu encontro num lindo cavalo branco, a pegava em seus braços, lhe dava um delicioso beijo de amor e então ela acordou. Ligou o rádio e lá estava ele: Wando! Não havia de ser coincidência. Esse sonho só poderia ter um significado: Luzinete encontraria seu príncipe encantado a tempo de poder comemorar a festa de Santo Antônio e seu aniversário em sua cidade natal. Ela sabia que em breve ele chegaria vestido em um lindo suéter vermelho e, bom, quanto ao cavalo branco, ela imaginava que seria pedir demais.
Como já era tradição, ela sempre voltava à Santo Antônio para as festas do padroeiro e logo após a missa, sua família se reunia para comemorar seu aniversário. Ela havia prometido a si mesma que neste ano não iria viajar a menos que tivesse um namorado para exibir às amigas e parentes. A vida toda teve que agüentar os comentários da família dizendo que mulher nascida em dia de Santo Antônio não fica solteira. 27 anos depois e ela contabilizava um fracasso amoroso atrás do outro, por isso decidiu que não iria, não queria ser motivo de piada entre as amigas que já estavam casadas.
Mas aquele dia seria diferente. Nete, como era conhecida na loja, seguia com a sua rotina de arrumar as prateleiras, atender eventuais clientes quando aquele homem cheiroso entrou. Não sabia definir qual era o perfume, mas sabia que gostava e qual não foi sua surpresa ao olhar para o novo cliente e perceber que além de cheiroso e lindíssimo, ele vestia um suéter vermelho!
Como era de se esperar, tratou-o como um rei, ou melhor, como um príncipe encantado, lhe mostrou a loja inteira e na hora de pagar ele ainda a deixou uma gorda caixinha. O príncipe se fora, mas Nete tinha certeza que voltaria, ainda mais quando notou que o cheiroso, como passou a chamá-lo, havia esquecido o lindo suéter.
Uma semana se foi e nada do cheiroso voltar. Nete começou a pensar em ligar para o cliente, mas seu patrão achou melhor que não ligasse. Se ele sentisse falta do suéter, viria buscá-lo.
Só havia então uma coisa que ela poderia fazer: uma mandinga de amor, claro! Assim ela garantiria que seu cheiroso voltasse e quando o fizesse, ele se daria conta que estaria apaixonado por ela.
No mesmo dia roubou um fio do tal suéter, foi para casa, amarrou duas velas vermelhas com o fio vermelho, lambuzou as velas com bastante mel e deixou na janela para o banho de lua cheia. Para garantir, virou seu Santo Antônio de cabeça para baixo afim de que ele desse uma força à sua causa.
No dia seguinte, se perfumou toda, arrumou o cabelo esperando que sua simpatia fizesse efeito e seu príncipe entrasse pela porta da loja a qualquer momento. Ele não apareceu, nem naquele dia, nem no outro.
Duas semanas se passaram e Nete começou a aceitar o fato de que ele não viria. Ligou para os pais informando que neste ano passaria o aniversário na capital e deu a desculpa de que teria que trabalhar.
Mais um dia dos namorados chegava e Nete continuava solteira. Fora trabalhar como de costume, sem muito entusiasmo. No final da tarde, perto da hora de sair, um homem entrou na loja perguntando por um suéter vermelho que alguém teria esquecido semanas antes. Ela prontamente se dirigiu ao balcão e percebeu que aquele não era o “cheiroso”
— Com licença – disse ela – mas o senhor não é o homem que esqueceu o suéter. Eu me lembro bem dele, era mais alto, cabelos mais curtos e era muito cheiroso.
— Verdade. Meu namorado esqueceu aqui. Ele está ali fora, me esperando no carro.
— Nãoooooooo! – E Nete deixou escapar um grito que se ouvia a um quarteirão.
— Não?!
— Ah, me desculpe a indelicadeza, mas não imaginava que aquele homem tão lindo fosse gay!
— E por quê?Temos que ser feios?
—Não, claro que não, me desculpe, não estou num bom dia. – Nesta hora a pobre Luzinete não sabia onde enfiar a cara. — O senhor se importaria se eu devolvesse o suéter pessoalmente?
— Fique à vontade.
E lá foi ela devolver o suéter ao cheiroso que estava esperando seu namorado num lindo e possante carro branco. A esta altura, a pobre coitada achava que o destino tinha um péssimo senso de humor.
Nete chegou em casa tão desconsolada que tinha vontade de sumir. Ligou o rádio e lá estava ele novamente: Wando - fogo e paixão.
—Meu iaia,meu ioio uma ova! - E num impulso jogou as velas, o santinho e o mel pela janela.
— Ahhhhhhhhhhh
Ouviu-se então um grito de dor e Nete foi correndo ver o que tinha acontecido: era Jeremias, o porteiro do prédio vizinho que havia sido atingido na cabeça pelas velas que ela acabara de jogar.
Com a pancada, Jeremias caiu de sua bicicleta branca e ao cair, acabou sujando seu suéter vermelho.
Nete não teve dúvida, antes de sair para ajudar o pobre rapaz, ligou para os pais avisando que não teria mais que trabalhar no dia seguinte. Informou que iria para Santo Antônio comemorar o dia do Santo e seu aniversário juntamente com seu novo namorado, o Jeremias.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Blackout


Seguindo com meus contos de gaveta, este é mais um dos que alguns críticos consideram "pueril". Talvez exatamente por isso,eu goste tanto!
***********************************************************************************
O dia tinha trazido muita chuva e a noite chegava com um vento gelado que insistia em soprar fazendo uma espécie de uivo. Eu assistia TV quando o transformador na frente do meu prédio explodiu, deixando todo o quarteirão sem luz. Assim como muitas pessoas, eu fui correndo à janela para ver o que havia acontecido e o que vi foram sombras de árvores farfalhando entre os morcegos que estavam em festa. Em pouco tempo o cheiro de incenso e velas aromatizadas tomou todo o ar e por falta de coisa melhor para fazer, resolvi ir me deitar.

Acendi uma vela e segui em direção ao meu quarto e qual não foi minha surpresa ao me deparar com um grande sapo sobre a minha cama! Um sapo do tamanho da minha gata, que àquela altura devia estar escondida debaixo da cama, morrendo de medo. A criatura verde, de pele enrugada e enormes olhos vermelhos coaxava enlouquecidamente enquanto me encarava. Não sabendo muito bem o que deveria fazer, resolvi colocá-lo numa caixa na área de serviço para me livrar dele no dia seguinte.

Voltei ao meu quarto e lá estava ele novamente! Como havia conseguido sair da caixa e voltar à minha cama tão rápido? Já assustada com o monstrengo, resolvi então jogá-lo pela janela. Com o blackout talvez ninguém fosse notar o super sapo voador. Joguei-o e ouvi outro estrondo! Corri para a janela da sala e o transformador havia explodido novamente. Ao que parecia, o pessoal a companhia elétrica teria muito trabalho naquela noite fria.

Retornei à minha cama para me deparar com o maldito sapo me esperando e desta vez, coaxando ainda mais alto! Se já estava com medo antes, naquela hora comecei a ficar apavorada. Peguei a vassoura e bati tanto no sapo que só o que sobrou foi uma sujeira nojenta para eu limpar, mas ao menos, havia me livrado dele. Foi o tempo de eu buscar um pano para limpar o chão e voltar para notar que a sujeira havia desaparecido e o sapão estava de volta à minha cama saltando e coaxando de forma ensurdecedora.

Pensei: “Se ele não sai, saio eu!” e já abria a porta quando ouvi uma conversa vinda dos corredores do prédio. Seriam os moradores? Olhei pelo olho mágico e vi sombras se esgueirando pelas paredes, vindo em direção à minha porta. Será que aquela noite poderia se tornar mais sinistra? Um sapo gigante na minha cama que nunca morria e agora sombras falantes batendo à minha porta:
- Toc, toc, toc...
Eu não respondi. Fiquei ali paralisada atrás da porta.
- Toc, toc, toc...
A sombra não iria embora enquanto eu não abrisse. Não sabia o que fazer. Foi quando ouvi:
- Por favor, senhorita, abra a porta. Não vou lhe fazer mal, só vim buscar o meu sapo.
Que escolha eu tinha? Ao menos surgiu a esperança de que alguém ou alguma coisa fosse levar o sapo dali.

Abri a porta e dei de cara com outra figura bizarra: o ser de cor verde tinha pernas extremamente finas e compridas, não deixando muito espaço para seu tronco. Seus braços longos e igualmente finos carregavam uma bengala e seu rosto minúsculo me fazia lembrar aqueles pigmeus das cabeças encolhidas. Sobre a cabeça ele usava uma cartola que combinava muito bem com o smoking que vestia. Seus olhos tão vermelhos quanto os do sapo, me fitavam esperando um convite para entrar.
- Hã... Entre por favor, senhor... ?
- Greener. Croaker Greener.
- Senhor Greener, entre, por favor. Me acompanhe até a sala.
- Muita gentileza sua.
- Fique à vontade. Seu sapo deve estar ansioso para revê-lo.
- Muito Obrigado.

Nesta hora o sapo apareceu saltitante na sala e se juntou ao seu dono no sofá. O senhor Greener exalava um cheiro insuportável de ovos podres e enxofre, mas eu disfarçava meu desconforto como podia, pois não queria fazer desfeita para minha ilustre visita.
- Ao que devo sua visita no meio dessa noite escura?
- Bom, minha cara, serei breve, pode ficar despreocupada. Você deve estar imaginando o que está acontecendo, certo?
- Precisamente.
- O blackout é a explicação. Sabe, quando blackouts ocorrem, principalmente com explosões como as que aconteceram, é impossível não sabermos lá embaixo.
- Lá embaixo? Onde seria exatamente “lá embaixo”
- Você sabe, no submundo, trevas, inferno... Como preferir.
- Ah, sei, claro – a frase acabou saindo como se eu estivesse achando tudo muito natural.
- Então, no momento do blackout, um portal se abriu e quem estava passando por lá naquela hora, aproveitou para dar uma escapada. Demônios de todos os tipos. Você até que deu sorte porque eu não sou dos piores,
- Nossa, me sinto muito mais aliviada – falei num tom sarcástico.
- Você não tem o que temer. Na verdade só há uma coisa que nos interessa demais aqui em cima.
- E o que seria?
- Suas comidas. Lá embaixo não temos toda essa sorte de guloseimas, sabe?
- Sério mesmo? Mas que tipo de guloseimas poderia lhe servir?
- Você tem chocolate?
- Tenho.
- Hamburguer?
- Também.
- Balas.
- Ahan.
- Gostaríamos de um pouco de tudo.
- Ok... Mas e depois?
- Depois nós partiremos e lhe deixaremos em paz.
- Feito!
Então fui até a cozinha para pegar tudo que era porcaria que pudesse encontrar. Preparei uma farta bandeja com doces, pães, refrigerantes e voltei à sala na esperança que minhas visitas se fossem o quanto antes.
- Aqui está.
- Muito Obrigado.
O senhor Greener e seu sapo devoravam tudo que havia na bandeja como dois glutões quando as luzes voltaram: Puff!
Os dois haviam sumido, mas os vestígios de sua visita ainda estavam lá: além do mau cheiro, embalagens de doces e manchas de refrigerante infestavam meu sofá. Imaginei que teria que queimá-lo em seguida.

Me preparava para dormir quando meu marido chegou, mas não tive vontade de comentar o ocorrido. Ninguém acreditaria mesmo.

O que sei, é que nunca deixo faltar chocolate em casa. Desde aquela noite, outros blackouts aconteceram enquanto eu dormia e só sei disso, porque nas manhãs seguintes minha casa exala um odor de ovos podres e enxofre, além de que sempre dou falta de pelo menos uma barra de chocolate em minha dispensa.
Já tentei explicar ao meu marido sobre essas visitas por conta dos chocolates e do mau cheiro. Ele não acredita, mas por via das dúvidas, sempre que se lembra, compra um punhado de doces e os deixa no baleiro em cima da mesa de jantar.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O Cuco


Onze badaladas e um susto. Era a segunda vez que o cuco resolvia funcionar desde que o trouxera para casa há mais de dois anos. Sempre odiei este relógio, desde quando minha avó era viva.
Curioso pensar que ela se fora exatamente às onze horas da noite de um dia 11 de novembro: 11 do 11 às 11 horas.
Agora, olhando para o imponente relógio eu tento me lembrar como foi que acabei ficando com este trambolho no meio da minha sala.
Nunca acreditei nessas histórias de espíritos, mas já tinha ouvido falar de relógios que paravam de funcionar quando seus proprietários morriam. Até ai, nada de mais, se não fosse o fato de que o cuco da minha avó não só havia parado de tocar, mas que todo dia onze de novembro às onze horas o infeliz resolvia trabalhar. Suas badaladas podem ser ouvidas a um quarteirão, causando arrepio em todo mundo que as ouve.
Há muitos anos atrás, cheguei a morar com minha avó e na época, o tal cuco funcionava perfeitamente, para o meu desespero e infelicidade. Anunciava as horas com precisão e com aquelas badaladas ensurdecedoras. Várias vezes cheguei a cobrir o relógio com um cobertor na tentativa de abafar o som e poder dormir, mas a velhinha acordava cedo e no dia seguinte sempre reclamava do cobertor que eu havia deixado no relógio.
Soltei fogos quando finalmente consegui sair do apartamento de minha avó para morar com meu marido. Só teria que ouvir o relógio quando a visitasse.
Infelizmente, eu era uma das poucas pessoas que a visitavam e sendo a primeira neta, tão logo ela se deu conta que um dia não estaria mais neste plano, me convenceu a ficar com uma chave do apartamento e me fez prometer que quando ela se fosse eu não deixaria nenhum parente entrar para pegar suas coisas. Sempre fora muito apegada a seus pertences e em especial aquele relógio. Por anos eu fui responsável por sua manutenção e por mais que eu rezasse para que algum dia alguém me dissesse que o cuco não iria mais funcionar, não teve jeito, a engenhoca continuava lá, firme e forte.
Minha avó chegou a escrever num pedaço de papel o que ela achava ser um testamento, deixando a velha máquina de costura para minha tia e o relógio para mim.
Obviamente, eu não estava muito tentada a cumprir a promessa de cuidar do cuco quando ela se fosse.
Pouco antes de morrer, minha avó começou a agir estranhamente. Dizia que meu avô a visitava em sonhos e que em um dos sonhos chegou a comentar que queria seu cobertor de volta. Oras, não me perguntem que cobertor era esse, o que eu sei é que dona Eunice estava convencida que havia me dado o tal cobertor e que meu avô a perturbava dizendo que não devia ter me dado sua coberta favorita.Insistiu durante meses que havia me dado um cobertor marrom e que eu devia ter dado a outra pessoa,por isso meu avô a atormentava todas as noites:
—Filha, se você não queria o cobertor, não devia ter aceitado! – ela dizia
E não adiantava eu dizer que não sabia do que se tratava, pois mesmo depois de meses, embora não comentasse comigo, fiquei sabendo que comentava com minha tia que eu devia ser uma cabeça de vento por não lembrar das coisas.
—Onde já se viu?Menina tão nova. Eu tenho 85 anos e nunca me esqueço de nada.
Minha tia brincava dizendo que se eu não ficasse com o relógio, dona Eunice viria puxar meu pé à noite, assim como meu avô fazia com ela por conta do maldito cobertor.
O tempo passou e minha avó acabou adoecendo. Foi para o hospital e em seu leito de morte me fez prometer mais uma vez que cuidaria das coisas que havia me pedido.
Em seu enterro reencontrei parentes que não via há muito tempo, inclusive meus tios, filhos da falecida.
Por ocasião de sua morte, nem pensei em promessa alguma. Entreguei as chaves do apartamento a um dos tios e deixei que cuidassem do inventário.
O cuco havia parado de funcionar, marcando onze horas. Era uma verdadeira raridade e por incrível que pareça, muita gente queria ficar com ele, mas sugeri que meu tio Antônio ficasse com a peça, uma vez que ele mesmo havia presenteado sua mãe com o relógio. Fiquei feliz ao pensar que não ouviria as badaladas tão cedo e que não teria que encarar aquele objeto sinistro. Ingenuidade a minha!
Assim que meu tio levou o relógio, percebeu que deveria enviá-lo a um relojoeiro para conserto. O relógio não passou dois dias na relojoaria e voltou sem esperanças:
—Me desculpe seu Antônio, mas esta porcaria não tem conserto. Acho que deveria se desfazer desta geringonça. Enquanto estava na oficina, o cuco não parou de tocar, onze badaladas, de hora em hora, mesmo sem que eu desse corda. Devia mandar benze-lo.
Meu tio achou graça e resolveu colocá-lo em sua sala. Sua vida não seria a mesma após a chegada do relógio. O maldito cuco passou a tocar de hora em hora, sempre onze badalas. Seu filho mais novo, Pedro, de apenas nove anos, passou a ter alucinações com a bisavó. Dizia que ela saia de dentro do relógio e perguntava:
—Por quê?Por quê?
Os negócios do meu tio começaram a ir de mal a pior, mas seus irmãos faziam disso tudo motivo de piada. Até que certa noite, já cansado do barulho tão irritante do cuco, resolveu acertá-lo com uma paulada. Nada aconteceu ao relógio. Nem rachou, muito pelo contrário, as badaladas pareciam cada vez mais altas.
Tio Toninho, como eu o chamava, não sabia mais o que fazer. Seu filho chorava o dia inteiro e não passava mais pela sala. Insistia que sua bisa continuava lhe perguntando “Por quê? Por quê?” até que notara algo no interior do relógio. Era um bilhete, assinado por minha avó. Um testamento, como ela chamava, no qual ela escrevera suas intenções em relação ao tão estimado objeto. Estava claro o que meu tio deveria fazer: deveria entregar o relógio a quem lhe era de direito.
E foi assim que o cuco veio parar no meio da minha sala. Meu marido não gostou muito da idéia, mas a verdade é que desde que o relógio chegou, não tocou uma só vez, a não ser pelos dias onze de novembro às onze horas da noite.
Meu priminho está melhor, diz que sua bisa não o visitou mais e meu tio conta que após ter se livrado do relógio, sua mãe o visitara em sonho para dizer “obrigada”.

domingo, 8 de janeiro de 2012

FRAGMENTOS


Uma pessoa acorda e passa o dia no trabalho, como a maioria das pessoas que conhece. Chega em casa, janta com a família, assiste às desgraças noticiadas no jornal e em seguida absorve imóvel a trama de sua novela favorita. Ao se deitar, imagina como é feliz por sua vida ser tão diferente do noticiário e porque finalmente a protagonista da novela consegue encontrar seu amado após um terrível acidente de carro que o deixara cego e paralítico. “Sim, minha vida é boa!” pensa e dorme.
Aos sábados vai ao supermercado, ao shopping e quem sabe a um churrasco com os amigos, onde todos ouvem as mesmas músicas vazias que são hits nas rádios, fazem piadas sobre futebol, comentam a novela...
Finalmente no domingo, assiste aos programas sem conteúdo, ri das pegadinhas imbecis e ouve o depoimento da celebridade do momento, imaginado que sua vida seria muito melhor se tivesse a mesma fortuna.
Em outro ponto da cidade, a socialite prepara a festa de aniversário de sua cadela enquanto dá uma entrevista detalhando o evento para uma famosa revista de futilidades. Seu filho mais velho relaxa no iate da família enquanto o outro cursa uma universidade no exterior. Não sabe quantos pares de sapato tem, mas sabe quantas plásticas já fez. Costuma freqüentar festas beneficentes, acreditando que sua contribuição faça alguma diferença. Ao se deitar, pensa no sentido de sua vida e a idéia de suicídio lhe parece tentadora, mais uma vez.
Lá do alto, um político contempla sua ilha particular recém-adquirida com o dinheiro desviado de verbas para construção de casas populares. Pensa em o quanto é bom viver em um país de otários que agem como um rebanho de gado. Já dizia a música: “Eh, vida de gado! Povo marcado, eh, povo feliz!” Ele se sente mesmo muito feliz e sabe que ainda poderá roubar muito mais, já que o povo não se importa desde que tenha sua novela e suas músicas para dançar.
Em algum momento da semana que passou, todos eles circularam pelo centro da cidade e ignoraram a presença de Miguel. Qualquer outra pessoa também preferiria ignorá-lo. Miguel tem 11 anos e vive nas ruas há um ano, desde que atirou em seu irmão menor enquanto brincava com o revólver do namorado de sua mãe. Ela não quer mais saber dele. Hoje, ele só gostaria de dormir em sua cama, sem ter medo de ser morto. Amanhã pensa em como conseguir algo para comer. Nos finais de semana, quando as famílias costumam lotar os restaurantes, ele imagina que um dia terá sua própria família e que cuidará bem de seus filhos, como sua mãe não o fez. Por alguma razão, ele tem esperança de que um dia as coisas possam melhorar.
Eu observo imaginando se poderia fazer alguma coisa para mudar o mundo, ignorando a inércia que me impede de promover mudanças bem menores, dentro de mim.
“A ignorância é uma benção”. O gado marcado ignora que as coisas poderiam ser diferentes e já está tão condicionado à sua situação, que mesmo que não houvesse mais cercas, não saberia o que fazer “Não voam nem se podem flutuar”. Mesmo assim, a sensação de pertencer a um grupo, faz com que todos se sintam seguros. Riem quando alguém diz que devem rir. Dançam e cantam sem nada questionar, porque não sabem que existe outra opção. Alguém diz que são felizes e eles aceitam. A vida é mais fácil dessa forma.
Eu nunca me senti parte disso. Sempre quis ser diferente e me irrita assistir a tudo sentindo uma vontade enorme de gritar e chacoalhar cada um. Mas não faria diferença.
Também não é uma vantagem ser diferente. Talvez fosse mais feliz se fosse igual ou ao menos ignorasse toda mediocridade que assola o mundo. Não sou melhor, nem de longe... Não tenho as respostas nem para os meus problemas. Só gostaria que as coisas fossem diferentes. É fácil observar e analisar o problema alheio, assim, ao menos por alguns instantes, você consegue ignorar seus próprios problemas ou fingir que não estão lá. O fato é que todo mundo os tem. Uns ignoram, outros procuram soluções sem nunca encontrarem e alguns poucos conseguem solucioná-los e partir para os próximos. É assim que é, não tem jeito e ao menos nesse ponto, somos todos iguais: cada um com seus problemas!