terça-feira, 2 de outubro de 2012

Trauma


Hoje, lendo um conto de Edgar Allan Poe, me lembrei do quanto gosto disso, desse estilo, dessa coisa meio sombria e totalmente infanto-juvenil que não chega a assustar mais ninguém, aí lembrei deste conto que escrevi há uns 2 anos e nunca havia postado.

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Débora ajeita o retrovisor para dar uma olhada em seu filho que não disse uma só palavra desde que deixaram a cidade. O menino de sete anos parecia comtemplar a paisagem, as árvores com suas folhas em vários tons de verde, marrom e laranja que voavam e batiam na janela do carro.
Sair de São Paulo para passar as férias de verão no interior fora a escolha de uma mãe preocupada com um menino que perdera o pai de forma tão trágica. Débora e Eduardo não estavam mais juntos, ainda assim, ela sentia muito a perda, principalmente por causa de Pedro que presenciara tudo: o pai fora assassinado durante um assalto à sua casa , enquanto jantavam. Pedro fora poupado, mas o trauma que o episódio lhe causaria, seria permanente.
Como era triste pensar que o primeiro enterro que Pedro tenha assistido fora o do próprio pai. A mãe estranhava a maneira como o filho estava lidando com a situação. Três meses haviam passado desde o ocorrido e o menino parecia bem, a não ser pelo fato de que se tornara muito calado.
— Tudo bem aí atrás?
— Ahan.
— Olha, estamos chegando! Está vendo as placas? Visconde de Mauá – 5 kilômetros.
Débora era artista plástica e passaria os próximos meses trabalhando em uma grande encomenda para uma loja de decorações. Havia escolhido o lugar por saber que era uma região de natureza exuberante, com rios e cachoeiras, lugar perfeito para que ela e Pedro pudessem se recuperar do pesadelo que os últimos meses haviam sido.
A casa que ficariam era alugada e estava localizada no alto de uma pequena colina, em meio a um lindo bosque. O vizinho mais próximo estava a uns 500 metros. Senhor Onofre morava no pé da colina e mantinha uma pequena mercearia que abastecia as redondezas.
Após se estabelecerem no pequeno chalé, Débora se pôs a trabalhar em suas esculturas no quintal, de modo que pudesse observar Pedro brincando entre as árvores. Era reconfortante assistir seu filho sorrir, como se o inferno que viveram há tão pouco tivesse ocorrido anos atrás.
Em uma tarde, enquanto trabalhava, Débora perdera Pedro de vista. Chamou seu nome algumas vezes sem obter resposta alguma. Seu coração gelou e ela correu em meio às árvores do bosque já com lágrimas nos olhos, como se soubesse que algo terrível tivesse acontecido. Em poucos minutos, ela chegava à mercearia de seu Onofre, ofegante e desesperada. O proprietário do estabelecimento segurava Pedro em seus braços e ao se aproximar, notou que o menino estava desacordado e com arranhões pelo corpo todo.
— Pedro! Pedro! – gritava a mãe ao abraçar a criança.
— Calma, senhora! Vai ficar tudo bem. Ele chegou aqui nesse estado, chorando muito e chamando pela mãe. Fique sossegada, que eu levo vocês ao posto médico e lá cuidarão bem dele.
Débora ajeitou seu filho no banco de trás, ainda desacordado e seguiu na frente, no banco de passageiro com seu Onofre. Nenhuma palavra fora proferia durante o trajeto e a sensação que se tinha é que o clima estava tão tenso que seria possível cortá-lo com uma faca.
Chegando ao posto de saúde, o menino fora levado às pressas para a sala de emergência e algum tempo depois, um médico viria acalmar a mãe, dizendo que seu filho estava se recuperando bem. No entanto, o tom das perguntas que o doutor direcionava a Debora, deixava claro que ele suspeitava que a mãe teria sido responsável pelos ferimentos no corpo da criança.
— Como assim? O senhor está insinuando que eu teria machucado meu próprio filho? Que absurdo é esse? Até porque, seria muita estupidez da minha parte arranhar o menino daquele jeito e trazê-lo ao pronto socorro, não acha?
Atraído pelos gritos da mãe, Pedro aparece no corredor, com um frasco de soro pendurado no braço e Débora pode notar com mais nitidez que o que fosse que tivesse atacado seu filho, parecia não ter deixado uma única parte do seu corpo ilesa. Os dois se abraçaram e choraram, mas Pedro nada respondia à sua mãe quando esta lhe perguntava o que havia acontecido. Débora achou melhor não pressionar o garoto, dados os últimos acontecimentos em sua vida.
Alguns dias se passaram e Débora tentou retomar seu trabalho, só que desta vez, sem tirar os olhos de Pedro, que a cada instante, parecia se distanciar mais e mais em um mundo que ela não conseguia entrar. O menino voltou a urinar na cama, coisa que ela também sabia que poderia acontecer devido ao trauma que o menino havia sido submetido. Ela acreditava que um animal teria atacado seu filho na floresta, mas por via das dúvidas, pediu que o chaveiro trocasse as fechaduras da casa.
Pedro, por sua vez, também começou a falar sozinho e quando questionado sobre com quem estaria conversando, ele dizia que se tratava de um novo amigo, Nilo.
Débora tentava se convencer de que a invenção de Nilo também era uma forma de seu filho lidar com os problemas, mas as coisas começaram a fugir do controle quando algumas de suas esculturas começaram a desaparecer e a gota d´água foi quando várias de suas pinturas haviam amanhecido pixadas, rasgadas, destruidas.
— Pedro, eu sei que você está passando por um momento muito difícil, mas destruir as coisas da mamãe não está certo.
— Não fui eu, mãe. Foi o Nilo.
— Pedro, olha, tudo bem você ter um amigo imaginário, mas isto está indo longe demais! Vamos parar com esta besteira, ok?
— Porque você não acredita em mim? Foi ele, eu juro.
Débora, vendo que não conseguiria convencer seu filho a confessar, resolveu deixar o assunto de lado por um tempo e o convidou para ir até a feirinha de artesanato da vila.
Já na vila, Pedro se enturmou com algumas crianças e Débora sentou em um dos bancos da praça com outras mães para observar seu filho. Uma das mulheres não demorou a puxar assunto:
— Olá, vocês não são daqui, né?
— Não. Estamos de férias na casa da colina.
— Ah, a casa da colina.
E tão logo a mulher terminou a frase, uma outra que também estava sentada completou:
— Puxa vida, já fazia tempo que ninguém ficava lá.
— É mesmo? E por que? – Perguntou Débora em um tom quase desinteressado para que as outras duas não percebessem que ela tentava manter segredo sobre o que estava passando com seu filho.
— Ah, você sabe, boatos.
— Cala a boca, Edna. Não vá você querer espantar os turistas!
— Não, por favor, eu quero saber.
Então Edna contou o que toda a vila sabia, diante do olhar de reprovação da colega:
— Então, essa região é cheia de hippies, né? Sabe como esse povo é! Inventam histórias para impedir o progresso. Diziam que quando o asfalto chegou, uma série de duendes ficou sem casa porque muitas árvores foram derrubadas e uma das árvores mais antigas, ficava no terreno onde foi construída a casa da colina. Por isso, que os duendes infernizam a vida de quem fica na casa. Mas isso é só uma lenda.
— Claro, imagine! Duendes... Bom, obrigada pela conversa, mas tenho que ir.
Débora puxou Pedro pelo braço e seguiu para casa certa de que o menino ouvira essa história em uma de suas visitas à vila e que inventara todas as mentiras para chamar sua atenção. Estava aliviada de pensar que encontrara a resposta, mas ficou ainda mais preocupada de imaginar que o garoto fosse capaz de se machucar apenas para aparecer.
Assim que chegaram em casa, Débora colocou Pedro para dormir em sua cama e ligou para a psicóloga que acompanhava o menino após a morte do pai. Ela explicou que todos os últimos eventos ocorridos não passavam de sinais claros de que Pedro estava querendo chamar atenção e que esse era o modo que tinha de lidar com a morte do pai. A psicóloga acalmou a mãe, dizendo que crianças chegam a se ferir gravemente e culpar amigos imaginários, tal qual vinha fazendo Pedro. Ambas chegaram à conclusão, de que mãe e filho deveriam retornar à São Paulo e dar continuidade ao tratamento da criança. Débora desligou o telefone um pouco mais aliviada e foi dormir.
Conforme se aproximava do quarto, pôde ouvir a voz de Pedro que parecia discutir com alguém, mas para sua surpresa, desta vez ouviu uma segunda voz, esganiçada e trêmula respondendo ao seu filho:
— Eu juro, juro, não falo mais nada. – choramingava o menino.
— Não adianta! Agora ela vai querer ir embora por sua culpa. Você falou demais! Eu já te aviso, que você pode até fugir, mas não vai conseguir se esconder! – Ameaçava a outra voz.
Débora correu em direção à porta, que se fechou com uma rajada de vento que soprara na casa e em seguida, só pode ouvir os gritos aflitos de Pedro. Ela forçava a porta sem sucesso enquanto o menino berrava desesperadamente e quando finalmente conseguiu entrar no quarto, se deparou com seu filho sozinho, chorando assustado e com o corpo coberto por hematomas. O menino estava em choque. Ela não teve dúvidas: agarrou tudo que pode no caminho do carro e deixou a casa, no meio da noite, em meio a uma penumbra sem fim. Ela não acreditava em duendes até então, mas se eles existiam, que ficassem com a casa, porque para lá ela não voltaria mais.

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Algumas semanas se passaram desde que mãe e filho voltaram à São Paulo. Pedro voltou a se consultar com a psicóloga e já estava com uma aparência melhor, sem arranhões, hematomas ou amigos imaginários.
Débora tentava não pensar na casa da colina e quase conseguiu esquecer o lugar até uma manhã dessas, quando ao acordar, deu de cara com Pedro ao lado de sua cama. Ele parecia que a observava há algum tempo. Tinha os olhos vidrados e ao abrir a boca, pronunciou um som esganiçado e trêmulo dizendo:
— Você pode até fugir, mas não vai conseguir se esconder.




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