segunda-feira, 24 de maio de 2010

Regretless



Aline não via a hora de sua encomenda chegar. O novo sucesso no mercado era anunciado em todas as redes de TV várias vezes ao dia, de forma que em pouco tempo após seu lançamento, havia quase esgotado nas lojas do país.
Há muitos anos os cientistas pesquisavam uma forma de viabilizar que as pessoas pudessem apagar certas memórias que consideravam indesejáveis. Na verdade, os estudos em torno do assunto começaram no intuito de amenizar traumas causados por pesadelos recorrentes, que em muitos casos, eram entendidos pelo cérebro como uma terrível lembrança, fazendo com que o paciente desenvolvesse fobias e distúrbios mentais.
No início, a idéia era que o tal apagador de lembranças fosse vendido apenas sob prescrição médica, mas a empresa responsável pela marca do produto conseguiu na justiça o direito de comercializar o regretless - que em Inglês significa “sem arrependimentos” – em todas as lojas de departamento do território nacional.
A campainha toca e Aline corre para atender a porta. Ela rapidamente abre o pacote que imaginava ser maior e finalmente ali está: a solução para anos de sofrimento solitário. Ninguém sabia o que se passava em sua cabeça e o que tanto a afligia. Tinha fantasmas que a assombravam há anos, fazendo com que muitas vezes tivesse até pensado em suicídio, tamanho era seu tormento. Nem mesmo anos de terapia foram capazes de amenizar seus problemas, pois os segredos que escondia, não ousava contar nem a si, muito menos à um desconhecido. Não queria ser julgada por seus erros do passado, pois ter que lidar com eles já era punição suficiente. Ninguém poderia entendê-la.
O aparelho em suas mãos era pouco maior que um telefone, no entanto, seu manual de instruções era gigantesco. Aline estava ansiosa demais para se prender a pequenos detalhes, por isso, atentou apenas às partes destacadas do texto, julgando serem mais importantes, entre elas, as seguintes frases chamavam mais atenção:
- O regreteless só deve ser usado uma única vez por cada usuário sob pena de danos irreversíveis à memória;
- O aparelho deve ser fixado no teto, posicionado acima da cabeça do usuário;
- É de extrema importância que anter de iniciar o procedimento, o usuário anote as lembranças a serem excluidas e de preferência reúna imagens que melhor represente o que deverá ser eliminado;
- Uma vez iniciado o processo, não é possível interrompê-lo ou revertê-lo;
- O processo é indolor;
- O usuário deve manter-se acordado durante o uso do aparelho sob pena de excluir lembranças que não gostaria;
Havia mais uma série de instruções, mas Aline já estava tão acostumada aos comerciais de TV sobre o produto que se sentia completamente capaz de operá-lo sem maiores problemas.
Aline seguiu para o quarto, passando pela sala, onde havia uma coleção de porta-retratos e pensou que ao terminar o procedimento ao qual iria se submeter, sua vida seria perfeita sem todo o arrependimento que carregava e que fazia questão de esquecer.
Chegando ao quarto, Aline subiu na poltrona que ficava ao lado da cama e fixou o aparelho no teto. Calmamente se deitou, deixando a cabeça bem na direção do objeto, respirou fundo e acionou o dispositivo com o controle remoto que segurava nas mãos.
Olhava fixamente para o pedaço de papel com todas as lembranças que queria apagar quando percebeu que partículas coloridas eram expelidas por todos os poros de seu corpo e flutuavam em direção ao teto. Achou a cena bonita e relaxou ao ponto de cair no sono. Não sentia dor... Não sentia nada, apenas uma leveza ao pensar em todo arrependimento saindo de seu sistema e indo para longe, para onde não pudesse mais ferí-la.
Algum tempo depois de ter acionado o aparelho, Aline foi acordada por seu marido e seu filho de dez anos que voltavam de uma partida de futebol.
O menino parecia ter muita coisa para contar e estava feliz. Pulou na cama aos gritos:
- Mamãe, mamãe! Ganhamos o jogo! Foi incrível! Eu fiz dois gols.
Aline olhou para a criança que pulava em sua cama com uma lágrima nos olhos e um sorriso nos lábios:
- Me desculpe, mas quem são vocês? Onde estou?

Um comentário:

Érika Freire disse...

Ótimo conto! Cheio de belas descrições. Confesso que queria ter um aparelhinho com esta função. rs
Até sábado! :)
Ahh, adorei sua dica do Letras em Cena. Fiquei bem interessada.
bjs